
Você conhece o ditado: “o que os olhos não veem, o coração não sente”?
Será que isso pode ser transferido para a frase: “se eu não tenho sinais clínicos, não preciso tirar radiografias pós-endodontia e posso considerar sucesso”. A leitura de hoje é sobre isso!
O que um estudo da revista IAPD de Julho/2023 revela sobre os tratamentos endodônticos em dentes decíduos? Será que tem sucesso a endodontia? Qual taxa de sucesso? O que fez “dar errado” nesses tratamentos? E eu, como clínico, o que posso mudar na minha prática clínica lendo este artigo?

Endodontia é um desafio para todos e o motivo principal eu acredito que seja “não ter um único protocolo clínico sugerido”, ou seja, não existe só uma maneira de fazer, não existe só um material, não existe consenso na literatura quer afirme com exatidão o que fazer ou não.
Claro que alguns pontos já são bem conceituados, como, por exemplo, a necessidade indispensável do isolamento absoluto, mas o resto, ainda ficam para muitos estudos.
Sobre este tema, a sugestão de leitura é o artigo “Reciprocating instrumentation for endodontic treatment of primary molars: 24-month randomized clinical trial”, publicado no International Journal of Paediatric Dentistry (2023;33:345-354), de autoria de Renata Pereira Samuel Marques et al. Aqui vai o resumo ( e claro, logo depois, minhas considerações).
O artigo teve como objetivo avaliar a efetividade clínica e radiográfica do sistema de instrumentação recíproca (como o R25 da WaveOne Gold) em comparação com a instrumentação rotatória convencional para tratamento endodôntico em molares decíduos, após 24 meses de acompanhamento (ou seja, vamos ver qual técnica é melhor para que eu, como clínica, decida se vale a pena o investimento em um novo modelo de endodontia).
- Desenho do estudo: Ensaio Clínico Randomizado.
- Participantes: Crianças com molares decíduos necrosados necessitando de pulpectomia.
- Grupos:
- Grupo Recíproco: Instrumentação com sistema recíproco (ex.: WaveOne Gold R25).
- Grupo Rotatório: Instrumentação com sistema rotatório convencional (ex.: K-files).
- Acompanhamento: Avaliações clínicas e radiográficas aos 6, 12 e 24 meses (2 anos é um bom tempo de acompanhamento, depois disso, é só lucro!)
- Critérios de sucesso: Ausência de dor, mobilidade, abscesso ou lesão perirradicular.
Resultados Principais
- Taxa de sucesso:
- Ambos os grupos tiveram alta eficácia (sem diferença estatisticamente significativa) em termos de sucesso clínico e radiográfico.
- Tempo de procedimento:
- A instrumentação recíproca foi significativamente mais rápida que a rotatória (ou seja, para os pacientes mais difíceis, essa técnica seria de escolha!)
Conclusões
- A instrumentação recíproca é tão eficaz quanto a rotatória para pulpectomia em molares decíduos, com a vantagem de reduzir o tempo de tratamento.
- Ambas as técnicas são viáveis e seguras para endodontia em dentes decíduos, mas a abordagem recíproca pode ser preferível em crianças devido à sua rapidez.
Comparação com Outros Estudos
Outras pesquisas já haviam mostrado que:
- Um estudo de 2021 (J Clin Pediatr Dent) também encontrou que a instrumentação recíproca é mais rápida que a rotatória em dentes decíduos.
- Uma revisão de 2020 (Eur Arch Paediatr Dent) sugeriu que técnicas mais rápidas reduzem o estresse da criança durante o tratamento.
- Porém, alguns estudos (como um de 2019, Pediatr Dent) alertam que a escolha do método depende da experiência do dentista, já que a técnica recíproca exige treinamento específico.

Agora, para descontrair a leitura e nos fazer pensar, separei 7 pontos que eu considero importante quando leio um artigo e fico intrigada com alguns detalhes (alguns deles não relatei no resumo).
- A idade de inclusão dos pacientes foi de 3-9 anos. Me questiono se um dente que tem apenas 1 ano de vida (exemplo segundo molar decíduo) de uma criança de 3 anos tem a mesma “força” de reparo que um dente de 6 anos de vida, ou seja, uma criança de 9 anos. Será que a lesão periapical de uma criança de 3 anos está o mesmo tempo que uma lesão de um dente em uma criança de 9 anos. Eu particularmente acho difícil comparar sucessos e insucessos com essa diferença de “velhice” dos dentes. Faz sentido isso para você também?
- O sucesso foi de 55%, mas considerado clínico e radiográfico. Mas te pergunto, então se eu não tirar radiografia e não tiver nenhum sinal radiográfico, posso considerar sucesso?
- Foi colocado “abscesso e fístula” no mesmo item, mas concorda comigo que geralmente o abscesso está mais “inflamado” a região? Então, não seria uma lesão maior e mais difícil de recuperar?
- Tipo de restauração: na literatura já conta que coroas são os melhores materiais para restaurar pós-tratamento endodôntico, por que ainda fazer estudos sem as coroas? Será que se colocasse coroa, o sucesso não subiria mais do que 55%?
- Não fala se as restaurações são classe I ou classe II. Você também observa que há uma grande diferença nessas restaurações para ter sucesso de falha? Por que isso não foi considerado quanto ao insucesso?
- Foi considerado sucesso em Rx quando a lesão parou. Achei interessante, então posso considerar que se não regredir a lesão, mesmo assim é sucesso de tratamento.
- Na taxa de insucesso, a soma dos itens relacionados a “falha de restauração” chega em torno de 40%; será que se colocássemos coroas não subiria de 55% para 90%?
E aí, ficou com as mesmas dúvidas ou consegue me dar as respostas?
De qualquer forma, toda E QUALQUER pesquisa é válida para nossa evolução. Viva os pesquisadores e aguardo sempre leituras, pois a nossa prática clínica depende deles!
